“Nós nos acostumamos a ver só aquilo que é dinâmico,
que se agita ante os nossos olhos, que acontece (…).
Mas e quando nada, aparentemente, está acontecendo?
O vento sobrando nas árvores, ou a mulher que levanta a mão, com graça,
como se fosse soltar um balão.
Aí não se vê nada, mas de fato, tudo está acontecendo”.
Nelson Brissac Peixoto, “ Ver o invisível”
Vinte e dois anos separam a primeira vez que entrei em contato com o livro “A câmara Clara”, de Roland Barthes e minha leitura recente. Naquela época eu nem sonhava (conscientemente) com a psicanálise, mas desde que comecei a ver as coisas feito imagens, me interessei pela fotografia que ia além (ou aquém) das vendas, do mercado, do cliente. Aquela fotografia que o sujeito tem vontade de fazer só porque tem. Porque algo o move lá dentro para isso.
Nesta releitura me deparo com diversas referências à psicanálise e à maneira que eu me relaciono com as imagens.
“No fundo – ou no limite – para ver bem uma foto mais vale erguer a cabeça ou fechar os olhos. “A condição prévia para a imagem á a visão”, dizia Janouch a Kafka. E Kafka respondia: “Fotografam-se coisas para expulsá-las do espírito. Minhas histórias são uma maneira de fechar os olhos”. A fotografia deve ser silenciosa(…): não se trata de uma questão de “discrição”, mas de música. A subjetividade absoluta só é atingida em um estado, um esforço de silêncio (fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio). A foto me toca se a retiro de seu blá-blá-blá costumeiro: “Técnica”, “Realidade”, “Reportagem”, “Arte”, etc : nada dizer, fechar os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência efetiva” (Roland Barthes, a Câmara Clara).
Curioso falar em fechar os olhos diante da fotografia. Em uma das vivências que proponho, é exatamente isso que fazemos: fechamos os olhos para fotografar. E ao fechar esse campo que domina de forma arrasadora nossos sentidos, outras portas se abrem. Como se tirássemos algo do mais óbvio para que pudéssemos enxergar mais.
Já dizia Rubem Alves: “O ato de ver exige distância”. Uma linha tênue, que não sabe se une ou separa, mas que propõe uma dança entre a distância e a proximidade para que se consiga perceber além.
Isso se dá tanto quando produzimos uma imagem, quanto quando somos espectadores.
Como produtores, temos aquela fotografia que sai dali de dentro. Quando você está lá, andando na rua e tudo parece entrar numa sincronicidade que faz você apertar o botão naquele momento específico. Claro que nem toda foto é uma foto-sorte-tentativa-única, muitas são um processo longo de busca, mas na hora que o espetáculo acontece, a gente sabe.
Barthes fala de sua experiência como espectador de imagens – sua reflexão gira em torno do que é que em determinadas imagens dá aquele estalo interior, faz com que algo ali aconteça entre a imagem e quem a vê. Algo que não tem muita explicação objetiva, mas que nos conecta a outras dimensões, perpassa a cronologia do tempo e nos leva diretamente a algo que tem importância para nós. Muitas vezes nem entendemos o que naquela imagem nos levou a este outro lugar. Mas é como uma teia que nos enlaça e nos faz desejar habitar aquela cena – e não só visitá-la rapidamente. Como se a ela algo de nós pertencesse. Habitar tem em si um desejo de pertencer.
Falando da fotografia, parece (parece?) que estou falando da vida.
No nosso dia-a-dia, tantas vezes passamos por algo semelhante. Cheiros, sons, gestos, palavras que nos levam a outros lugares e que nos causam sentimentos diversos, nem sempre fáceis de se compreender. “Sensações deslizantes” que aparecem via sintoma, e que estão ali, inscritas em nossa pele.
Na psicanálise, se fala muito disso. Do que está lá inscrito em nós, latente, aparecendo nas mais variadas formas em nossas falas e atitudes.
“O sintoma é um símbolo da verdade do sujeito que não é indelével , pois está escrito na areia da carne, sendo portanto movediço. Para lê-lo é no entanto necessário saber ler na areia, pois ele está à vista e não enterrado”. (Antonio Quinet, A descoberta do inconsciente).
A fotografia (e a arte em geral) trabalham com isso, com essa latência, com a estrutura subjetiva do artista. De formas muito variadas, é como uma tela onde o sujeito coloca ali as questões de seu mundo, mas aquelas questões que são da ordem do indizível. Aonde faltam palavras, surge a arte.
Aonde faltam palavras, surgem sintomas.
Numa entrevista à revista Zum, Wim Wenders fala sobre essa mão-dupla da câmera fotográfica, que aponta pra fora e pra dentro:
“A câmera, portanto, é um olho capaz de olhar para frente e para trás ao mesmo tempo. Para a frente, ela de fato “tira uma foto”, para trás, registra uma vaga sombra, uma espécie de raio X da mente do fotógrafo, ao olhar direto através do olho dele (ou dela) para o fundo de sua alma”. Wim Wenders, Revista ZUM, n. 4, 2013
₢ Dani Sandrini Copyrighted. Estas imagens fizeram parte da exposição “Nós”, que falava da relação entre fotógrafa-fotografado. Café Suplicy, 2010.